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Ações Afirmativas, 15 anos: das cotas ao sucesso, profissionais contam suas histórias

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Premiados e vencedores. Assim podem ser chamados o jornalista Jorge Gauthier e a diretora teatral Fernanda Júlia Barbosa, profissionais de destaque formados pela UFBA, representantes da primeira geração de estudantes a entrar na Universidade através da reserva de vagas por critério sócio-racial, ação implementada no final de 2004 que inaugurou a política de ações afirmativas na instituição.
 
A segunda reportagem da série do EdgarDigital sobre os 15 anos de políticas afirmativas na UFBA traz os perfis desses dois profissionais, exemplos que mostram a transformação social promovida pelas cotas na vida de jovens vindos de grupos da sociedade com históricas dificuldades de acesso ao ensino superior. Uma década e meia após a aprovação da reserva de vagas na graduação para estudantes vindos de escolas públicas, contemplando seu perfil majoritariamente negro e de baixa renda – muitas vezes em situação de vulnerabilidade socioeconômica – a UFBA analisa as conquistas alcançadas, celebrando-as e, ao mesmo tempo, buscando antecipar-se aos desafios colocados ao processo de consolidação da política de ações afirmativas que vem transformando a instituição.
 
No ano de 2002, com o programa Universidade Nova, começaram na UFBA as discussões sobre o “processo de inclusão, ampliação do acesso e/ou diversificação na política de admissão de estudantes, tendo como base a proporção de participação dos grupos que compõem a sociedade”, como informa o artigo “Cotas e desempenho acadêmico na UFBA: um estudo a partir dos coeficientes de rendimento” (Peixoto et al 2016). Em julho de 2004, a política de ações afirmativas foi aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe) e publicada na resolução n°01/04. No final do mesmo ano, sairia o edital para o vestibular de 2005, o primeiro que trouxe a opção de reserva de vagas para alunos pretos e pardos que estudaram em escola pública.
 
Para aquela seleção, o jovem Jorge Gauthier, natural de Paripiranga (a 366 km de Salvador, no norte do Estado) inscreveu-se a fim de prestar o exame para ingressar no curso de Comunicação Social/Jornalismo, concorrendo pelas vagas reservadas às cotas raciais. E ele foi aprovado para o ingresso na Faculdade de Comunicação, no ano de 2005. No ano seguinte, foi a vez da alagoinhense Fernanda Júlia Barbosa tentar, também, pelas cotas raciais, a entrada no curso de direção teatral da Escola de Teatro da UFBA. Ela surpreendeu-se ao passar em segundo lugar, entre os classificados para ingressar em 2006.
 

Jorge Gauthier: cotas, permanência, talento e prêmios

Jorge Gauthier é graduado em Comunicação Social/Jornalismo e especializado em Jornalismo Científico e Tecnológico, ambos pela UFBA. Atualmente, é chefe geral de reportagem do jornal Correio; criador do blog Me Salte – primeiro canal de notícias LGBT vinculado a um jornal da mídia tradicional brasileira – e escritor do livro premiado “Irmã Dulce: os milagres pela fé”. Mas até ocupar essa posição de destaque no jornalismo baiano, trilhou uma longa jornada, desde a saída de seu município natal, na divisa da Bahia com Sergipe.
 
Para Gauthier, as cotas foram fundamentais não apenas para a entrada, como para sua permanência no ensino superior. “Se elas não existissem, teria sido muito mais difícil continuar na universidade, cursando os quatro anos da graduação, devido à distância de realidade na convivência com o perfil clássico dos estudantes que sempre frequentaram a UFBA – brancos e de elite, ou pessoas de classes um pouco abastadas”. Ele destaca que o fato de ter encontrado outros estudantes com histórias e vivências semelhantes às suas foi determinante para sua permanência, devido à “rede de apoio mútuo, estabelecida entre esses iguais: estudar juntos, partilhar custos e transportes foi fundamental para todos concluírem o curso, e o índice de desistência foi muito baixo – apenas uma pessoa desistiu do curso por questões financeiras”, lembrou.
 
Jorge, que é o primeiro e único, até o momento, em sua família – por parte de mãe – a pisar numa universidade pública federal, viveu a infância no interior com simplicidade, na família composta por pai motorista, pela mãe, professora da educação fundamental e pela única irmã, cinco anos mais nova. Desde cedo, gostava de ler vários livros, incentivado pelo pai, que apesar de ter estudado apenas até o 5º ano, era “entusiasta da leitura”, recorda Gauthier. Após ele concluir a 5ª série, seu pai, preocupado com a educação dos filhos, resolveu mudar-se para Salvador, a fim de buscar mais alternativas de estudo na capital.
 
A família passou a morar num apartamento no bairro do Cabula, emprestado por uma tia. Jorge, então na 6ª série, foi estudar na rede pública, até concluir o ensino médio. Desejando ingressar numa universidade, procurou um cursinho gratuito, mas, não satisfeito com o ensino, decidiu com seu pai, buscar uma bolsa num cursinho particular para revisão do conteúdo para o vestibular.
 
O jornalista lembra que aquele período “foi muito difícil”, pois sua família “contava apenas com uma renda mensal de R$ 149 – advindos da aposentadoria da mãe, devido a um problema de saúde e porque o pai estava desempregado”. Por isso, todos os dias, pela manhã, Jorge saía de casa sem comer para ir às aulas. Por não ter dinheiro para o transporte, descia e subia uma ladeira perigosa entre os bairros do Saboeiro e do Imbuí, para ir até o cursinho. Mesmo assim, quando voltava para casa, iniciava outra jornada de estudo “até a hora de dormir, usando módulos do cursinho, já que não tinha internet para pesquisar em casa”.
 
Quinze anos se passaram desde que Gauthier soube do resultado do vestibular pelo noticiário noturno da TV, e a emoção ainda é visível em sua voz e olhar. Tamanha era a alegria que, para convencer-se de que tinha mesmo passado, ele foi conferir a lista de aprovados numa lan house e, na manhã seguinte, comprou dois jornais diferentes para constatar seu nome na lista de classificados do vestibular da UFBA. Ao efetivar a matrícula no campus de Ondina, o estudante percebeu que teria uma jornada difícil pela frente: além de ter que conciliar a faculdade com o trabalho num call center, vislumbrou as adversidades que se delineavam no ambiente universitário: o desafio da permanência, a recepção de alguns colegas de classes mais abastadas e o descrédito intelectual por parte de alguns professores.
 
No quinto semestre do curso, teve que fazer uma escolha difícil ou perderia a oportunidade de se tornar um jornalista. Como trabalhador teleatendimento, foi promovido a um cargo no setor de recursos humanos, o que lhe daria um salário quase 10 vezes maior que uma bolsa de estágio, à época. Mesmo assim, ele optou por um estágio num jornal de pequeno porte, no qual deveria atuar sozinho como pauteiro, repórter, diagramador e revisor do impresso, que era distribuído numa estação de ônibus. Seu próximo estágio seria em uma empresa que produzia cadernos especiais para o jornal Correio*, o que lhe abriu caminhos, em 2008, para a seleção no Programa de Formação de Jovens Talentos, superando 14 etapas com 7 mil candidatos.
 
Entrou para a sessão Alô Redação do jornal, onde apenas atendia ao telefone, mas não ficou acomodado: logo começou a “cavar espaço”, ligando para vários órgãos e apurando informações. Até que fez uma descoberta que viraria manchete principal do jornal: um roubo de 41 armas no fórum de Camaçari. Daí, foi integrado à equipe de redação do jornal, primeiro no online e depois no impresso, onde ficou de 2010 a 2014, como repórter da editoria de Cidade. De 2014 a 2015, foi chefe de reportagem de Economia. E em 2016, assumiu a chefia de reportagem geral do Correio, onde atua até hoje.
 
No jornal, Gauthier fez uma série especial de reportagens sobre a vida da freira baiana Irmã Dulce dos Pobres, declarada santa recentemente pelo Vaticano. E como trabalho de conclusão de sua especialização em jornalismo científico, escreveu um livro-reportagem com o mesmo tema: “Irmã Dulce: os milagres pela fé”, que venceu o troféu Dom Helder Câmara da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil e ficou em segundo lugar no prêmio José Hamilton Ribeiro de língua portuguesa, concorrendo com jornalistas de sete países de língua portuguesa.
 
Gauthier conta que, diante da canonização da freira, haverá uma nova tiragem do livro, impresso pelas Obras Sociais de Irmã Dulce, mas ressalta que o “objetivo não é ganhar dinheiro com o tema”.  Ele ressalta que “todo dinheiro obtido com as vendas da obra foi destinado à compra de cestas básicas para doação”, pois acredita que “o papel da comunicação não é, necessariamente, ganhar dinheiro.  É também uma retribuição social, em alguns aspectos”.
 
O jornalista também acumula outros reconhecimentos, como ter sido finalista do VI prêmio da Associação dos Magistrados do Brasil, na categoria regional impresso com o trabalho “Estatuto do Crime”, e também finalista do prêmio Esso de jornalismo 2009, na categoria Primeira Página com o trabalho “A certidão do descaso”.
 
Fernanda Júlia Barbosa: a menina do interior que queria ser diretora teatral
 
Fernanda Júlia Barbosa é graduada em direção teatral pela Escola de Teatro da UFBA, com mestrado concluído e doutorado em andamento pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Também atuou como professora substituta na escola, ministrando a disciplina Teatro da diáspora afrodescendente por dois semestres. Conhecida pelo nome artístico de Onisajé, ela é dramaturga e diretora teatral premiada: seu trabalho mais recente foi o espetáculo “Pele negra, Máscaras brancas”, montado com a Companhia de Teatro da UFBA, que pela primeira vez, teve na direção uma mulher negra.
 
Fernanda Júlia é natural de Alagoinhas, de família de classe trabalhadora: seu pai é pedreiro e sua mãe, doméstica e manicure. Sempre morou na periferia e estudou em escola pública. A vocação para o teatro vem desde cedo, em 1988, quando, ainda estudante do nível médio, atuou em sua primeira peça, num festival de teatro na escola. Ela conta que seus dois irmãos a viram em cena e também resolveram seguir o mesmo caminho. “Ambos também graduaram-se pela Escola de Teatro da UFBA e foram beneficiados pelas cotas”, revelou.
 
Quando prestou vestibular para acessar a Escola de Teatro da UFBA, optou pelas cotas raciais por ser “negra, filha de pai e mãe negros”, disse Fernanda Júlia, pois viu que “estava diante de uma possibilidade real de ingresso numa universidade pública federal. Uma verdadeira chance de transformação social, pois sou a primeira da família a cursar uma universidade pública e, até hoje, a única a acessar o doutorado”, comemora.
 
O momento de ingresso na Universidade foi um “misto de sonho e pesadelo”, relembra. Primeiro, o “sonho”: ela conta que “sempre quis a formação superior para ser diretora teatral” e foi aprovada em segundo lugar para o curso, o que representou “uma vitória”. Ao ter visto o alto escore alcançado, Fernanda Júlia conta ter “descoberto [sua] capacidade, superando o estigma de que o estudante de escola pública é incapaz”. E a matrícula no campus de Ondina foi, para ela, algo “impressionante, diante do tamanho e da imensidão da Universidade, para mim que vim de escolas pequenas”, ressaltou.
 
Mas, como residente do interior do Estado e de família sem condições de financiar os estudos em outra cidade, enfrentaria um “pesadelo”: “eu teria que sair de casa, deixar meu emprego em Alagoinhas, para viver numa outra cidade por minha conta e risco, onde não tinha onde morar, como me sustentar. Não sabia o que fazer!”, recorda. Felizmente, naquele momento, a UFBA expandia sua política de ações afirmativas, implementando programas que geravam benefícios para estudantes em situação de vulnerabilidade sócio-econômica, a fim de assegurar sua permanência na instituição.
 
“Se não fossem os auxílios da assistência estudantil – moradia na residência mista do Canela (R3) e refeições no restaurante universitário (RU) – eu não teria concluído minha graduação com a qualidade que concluí, pois terminei com o escore alto de 9,8. Esses auxílios foram fundamentais, porque eu podia abrir mão de alguns estágios e escolher fazer somente os que estavam ligados à área de minha formação e podiam ser agregados como atividades completares em meu currículo”, destacou.
 
Fernanda Júlia recorda a “ralação” de cursar a universidade como cotista: as aulas eram concentradas no turno da manhã, ela estagiava à tarde e, à noite, trabalhava. Além disso, os contatos da residência também foram fundamentais para firmar futuros trabalhos. Para ela, “as ações de permanência são fundamentais para quem vem de outros municípios e estados para realizar o sonho da busca pelo conhecimento. Graças ao projeto Permanecer, eu pude ser bolsista no Teatro da Escola como técnica, ampliando o escopo dos meus estudos.  E assim, eu e meus dois irmãos pudemos cursar a Universidade Federal da Bahia”, assegurou.
 
Após a graduação, a trajetória de Fernanda Julia Onisajé é marcada por trabalhos destacados e premiados, como os roteiros de Senzalas – A história, o espetáculo (2002), Siré Obá – A Festa do Rei (coautoria de Thiago Romero, 2009) e indicações ao Prêmio Braskem de Teatro na categoria Revelação, em 2009; Ogun – Deus e Homem (coautoria de Fernando Santana), em 2010;  Oduduwá – O poder feminino da criação (2015), Macumba – uma gira sobre poder , em 2016, e Rosas Negras , em 2017. Sua trajetória começou no teatro amador, com o Grupo NATA (Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas, do qual foi fundadora e é diretora artística), e, em Salvador, no Teatro Vila Velha. Ela também dirigiu, em parceria com Susan Kalik, o documentário O que aprendi com minhas mais velhas (2005), que ganhou 28 prêmios, rodando por todo o Brasil e estreou no último dia 08/08, na SEC TV.
 
Sua pesquisa é na área religiões de matrizes afro-brasileiras com foco no candomblé de ketu, que resultou na dissertação de mestrado Ancestralidade em cena: Candomblé e Teatro na formação de uma encenadora,onde narra e disserta sobre sua trajetória enquanto artista e religiosa. Atualmente, cursa doutorado com o projeto de pesquisa Teatro Negro e Ancestralidade: Itans e Orikis como poéticas de criação da cena, sob a orientação do professor Luiz Marfuz. Ela conta que “é um aprofundamento do que fiz no mestrado, explorando o diálogo entre o candomblé e o teatro, resgatando trabalhos realizados desde o ano de 2009, no âmbito do chamado teatro preto de candomblé, pautado e matriciado pelos elementos ritualísticos, e do ’empretecimento’ do teatro e seus conceitos normativos e operativos”.
 
Conflitos e transformações
 
Tanto Jorge Gauthier quanto Fernanda Júlia Barbosa contam ter vivido conflitos por serem das primeiras turmas de estudantes cotistas da UFBA. De acordo com o jornalista, “como um dos 45 cotistas da turma de 90 calouros do ano de 2005 da Faculdade de Comunicação da UFBA, percebi que a universidade não estava preparada para nos receber. Era algo novo, estudantes com histórias totalmente diferentes do perfil de estudantes que frequentavam a UFBA”. Tensões e conflitos foram estabelecidos, e sua turma desempenhou um papel fundamental para questionar e propor temas que levavam à reflexão sobre aspectos que antes não existiam na instituição. “Tivemos a função de criar dificuldades para a Universidade se repensar e entender o novo perfil de seus alunos”, contou.
 
Gauthier acredita que sua turma teve um forte papel na melhoria das condições que os futuros ingressantes por cotas encontrariam, ao propor a discussão de temáticas que, até então, estavam longe da academia. “Provocávamos discussões à medida que íamos entendendo o contexto, especialmente no que diz respeito à escolha de temáticas de disciplinas que propunham temas livres para o debate, abordando situações de minorias, mulheres, LGTQs+, candomblé, pagode e etc”. O jornalista avalia que “a faculdade foi conduzida a [um] fortalecimento das discussões” apontando que, hoje, a Universidade discute uma gama de assuntos “muito diferente do que era há 15 anos”.
 
Por estudar numa escola de arte, Fernanda Júlia afirma que não sofreu diferenciação por ser cotista, mas sim, no ambiente da residência universitária. Ela conta que experimentou conflito com outros colegas que entraram por livre concorrência ao ouvir comentários pejorativos, e que, a todo momento, tinha que explicar “didaticamente a importância das ações afirmativas”.
 
Ela recorda que contribuiu muito nos debates sobre ações afirmativas no interior da Escola de Teatro, pois “era uma aluna do interior, cotista, que queria fazer direção teatral com texto próprio, falando de temas relacionados às religiões de matrizes africanas. Isso causou uma revolução no período de minha formatura, pois o público da Escola tinha que ver algo que não estava acostumado. No meu trabalho final de conclusão do curso, que é a montagem de um espetáculo, o orientador e membros da banca tiveram que buscar conhecimentos relacionados à cultura negra e aos princípios do teatro negro, que é diferente do teatro ocidental e europeu”.
 
“Senti na minha pele, na minha carne, a importância e relevância das ações afirmativas, pois, se não houvesse essa oportunidade, eu não seria quem sou hoje. No meu tracejo profissional, as ações afirmativas são como um pilar, tanto na graduação quanto na pós-graduação. É uma questão de justiça, de reparação”, avalia.